Semblantes (Rostos num Ícone) by Pavel Filonov - 1940 - 64 x 56 cm Semblantes (Rostos num Ícone) by Pavel Filonov - 1940 - 64 x 56 cm

Semblantes (Rostos num Ícone)

óleo sobre tela • 64 x 56 cm
  • Pavel Filonov - January 8, 1883 - December 3, 1941 Pavel Filonov 1940

Expressão é extração, é trazer a intimidade ao de cima e assentar o eu como motor do ato criativo. A arte mais memorável enraíza-se na demanda pela identidade; busca interligar tão profundamente o criador com a criação que torna o estilo do artista tão único quanto a sua pessoa. Consigo imaginar o rosto de Picasso; consigo imaginar o meu rosto pintado por Picasso.

Nietzsche afirmou, de tudo quanto fora escrito, "amo apenas aquilo que alguém escreveu com o próprio sangue". Esta imagem brutal da autocombustão da criação reflete a importância da individualidade para o filósofo e o seu desdém pelas abstrações espirituais—a sua crença em todas as coisas corpóreas e fisicas—uma atitude resumida por Oscar Wilde: "Aqueles que reconhecem alguma diferença entre corpo e alma não possuem nenhum dos dois."

Neste sangue corre o ferro vindo da morte de uma estrela distante—terá o artista de sondar pela identidade no espaço, ou perscrutar os átomos? Quão perto e quão longe são demasiado na busca pela identidade?

Ampliando uma espiral de código, terá a sua conceção primitiva. Porém, se o ADN detivesse a identidade, os gémeos partilhariam indissociavelmente da mesma. Avançando um pouco acima na escala, nada mais se evidencia além da fisicalidade iminente da identidade: as células, considerando-as como a matéria do corpo, torná-la-iam, com os seus desaparecimentos e surgimentos, numa entidade inconstante.

Uma complicada orquestra de glândulas e hormonas dirige as maquinarias do corpo no ritmo da respiração à marcação do metrónomo circadiano, dilatando vasos e contraíndo válvulas, ao som de uma composição ditada por uma infinidade de estímulos e perceções—à experiência de escutar este concerto interno e as variações que se desenrolam nesta harmonia vital chama-se Emoção. As emoções constituem a perceção interna do enquadramento corporal. A impressão do corpo a responder à capacidade de ver, o estímulo pelo qual se processa o medo, o impulso para o arranque de uma corrida, todos são emoções. Sem esta audição interna da orquestra do nosso corpo, a cognição perderia a cor: o coração não palpitaria com de receio, a expressão do medo resultando no músculo em concerto com a adrenalina e todas as hormonas afloradas pelo avistamento de um leão.

As emoções não são um ente holístico independente, radicam nos processos físicos do corpo. Pergunto-me se Tolstói se apercebia do quanto as nossas vísceras influenciam o estado de espírito quando disse que "a arte é a expressão da emoção". Até a própria personalidade depende desta relação: estudos recentes demonstram uma profunda ligação entre as microbactérias que transportamos e a nossa propensão à raiva, à hostilidade, à melancolia; a presença da hormona cortisol correlaciona-se com o stresse, na medida em que uma tendência a níveis baixos gera autodisciplina e ambição, ao mesmo tempo que uma baixa pulsação cardíaca se associa a ousadia e impulsividade.

Se a busca pela individualidade na personalidade se traduzir em variações bacterianas, então só nos restam as memórias e experiências para definir um ser como merecedor de valor artístico. Mas nem estas estão isentas dos afetos da emoção, cada segmento do processo invocando um sentimento para junto de si, confundindo e manipulando a memória. Um exemplo é a tendência para ampliar o brilho das recordações passadas para lá da sua vivência efetiva, deixando-nos com uma história de nós mesmos rescrita num mecanismo já demasiado vasto para traçar às origens.

Caos. Independentemente de para onde escolhamos olhar, a identidade será sempre uma soma infinita de elementos que transcendem permanentemente o nosso controlo. Toda a parte se desdobra noutra parte relativa num processo arbitrário. Mas atente no quadro: nenhuma outra colisão de circunstâncias poderia vir a resultar naquela peça exata, ele marca a única base em que a sua existência se alicerça—na unidade, para além de onde se fratura ao longo dos laços intercruzados, prendendo a eternidade a um ponto só no tempo. Procure, e é possível que ache o reflexo de um rosto—dir-lhe-á: "Eu existi!"

-Artur Deus Dionisio

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